A OBRA - POESIAS

VIA SACRA

Marcelo Gama (1878-1915) nasceu no Rio Grande do Sul e colaborou para a introdução do Simbolismo nesse estado, publicando o livro Via Sacra (1902). Anos depois, juntamente com outros poetas da província, transferiu-se para o Rio de Janeiro na esperança de conseguir um emprego no meio editorial. 
Colaborou na redação de revistas e jornais como Fon-Fon e A Hora. Sua obra é relativamente curta – como curta foi sua existência – e está reunida em Via Sacra e outros poemas (1944), onde se juntam ao livro de estréia alguns poemas dispersos.






MULHERES


Pela simples razão de eu ser viril e poeta
que celebra, encantado, eternas bodas,
olho as mulheres todas
com o mais impertinente interesse de esteta.

Por isso, às três da tarde e às vezes antes,
desconhecido entre desconhecidos,
levo para a avenida uns ares importantes
e afinado o quinteto dos sentidos.

E fico a deambular a tarde inteira
entre snobs e Apolos de pulseira.

Fico-me unicamente para vê-las
no florir do seu viço,
para senti-las, para analisá-las,
do autêntico ao postiço,
umas — soberbas, fúlgidas estrelas,
outras — de um palor lânguido de opalas...

E enrodilhando-as em olhares ledos,
o que se passa em mim pode ser comparado
àquele querer-tudo alvoroçado
das crianças nas lojas de brinquedos.

Olho-as, remiro-as de alto a baixo, sigo-as,
dispo-as, ponho-as em pose, impassíveis e brancas,
ora aqui desvendando imperfeições ambíguas
de atafulhadas ancas,
ora ali descobrindo, entre êxtase e surpresa,
formas definitivas de beleza.

De algumas eu já sei nomes, histórias, vidas,
crônicas passionais,
prestigiadas do encanto de um mistério;
biografias heróicas, doloridas,
escândalos banais
e banais episódios de adultério.

Porém, todas as mesmas, em conjunto,
maravilhoso assunto
de um poema intenso, em que ando a meditar,
e com um título antigo, assim ao jeito
das inscrições dos velhos pergaminhos:
"Das perfídias que hão feito
as mulheres, os vinhos
e as cartas de jogar".

(...)

Rio de Janeiro - 1909.

Poema integrante da série Dispersos.

In: GAMA, Marcelo. Via Sacra e outros poemas. Posfácio de Álvaro Moreyra. Rio de Janeiro: Ed. da Sociedade Felippe d'Oliveira, 1944. p.139-14



A UMA VELHINHA

No dia de Natal

Boas festas, velhinha! Eu te dou boas festas,
nestes versos que faço à glória dessas cãs
lavadas pelo pranto, as tuas cãs honestas,
— lindo corado ao sol de trinta mil manhãs.

Consente que eu te beije as mãos mumificadas,
trêmulas de sentir o frio dos desenganos;
mãos secas, espetrais, tiritantes, cansadas
de tanto abençoar durante oitenta anos.

E tomem essas mãos — camélias fenecidas,
que ora o amor elevou, quais ramos de oliveira,
ora o ódio agitou, crispadas, contraídas —
os versos em que evoco a tua vida inteira.

Já no tempo em que os teus cabelos foram pretos
e se usavam bandós, e os toucavas de flores,
um poeta de então fizera-te uns sonetos.
onde muito falava em — olhos sonhadores!

Inda os sabes de cor! — Os netos que os confrontem
com os versos de agora... E pões-te a recitar...
Bons tempos!... E parece entanto que foi ontem...
Não te podes conter... e ficas a chorar...

Choras... Que a tua vida é uma flor em desfolhos...
Sonhavam, velam hoje os teus olhos tristonhos.
Os sonhos, noutro tempo, erravam nos teus olhos;
os teus olhos, agora, é que erram pelos sonhos...

(...)


Publicado no livro Via Sacra (1902).

In: GAMA, Marcelo. Via Sacra e outros poemas. Posfácio de Álvaro Moreyra. Rio de Janeiro: Ed. da Sociedade Felippe d'Oliveira, 1944. p.49-50

NOTA: Poema composto de 20 quadras




SUGESTÕES DE OCASO


Não sei por que será que os aspectos de agosto
me convidam à cisma a hora do sol-posto!

Ontem fazia frio, era roxo o arrebol,
e céus e terra e tudo, as árvores e as águas,
pareciam estar carpindo as suas mágoas...
Choravam de saudade, ao ver partir o Sol.

E eu também fiquei triste, até eu, que sabia
que a treva era um instante e o Sol ressurgiria!

A natureza tem desses fundos mistérios...
Sei que uma sepultura é o nada, a eterna paz,
e entretanto, meu Deus! não me sinto capaz
de penetrar sozinho, a noite, em cemitérios!

Segredos que a razão não nos explica: o caso
é que eu participei da amargura do ocaso.

Erguendo os braços nus, despidos pelo outono,
o arvoredo guardava atitudes de prece.
O silêncio rezava. Era como se houvesse
romarias no espaço. A tarde tinha sono.

Da paisagem subia, espiralando, o incenso
que me fazia ter o coração suspenso.

E estávamos nós dois: eu e minh'alma, ali;
eu sentado, ela em frente; e pus-me a interrogá-la...
Pois embora ela fosse um doente sem fala,
não conto, por pudor, certas coisas que ouvi.

Por Deus Nosso Senhor, que perdi toda a calma!
E haver inda quem negue a existência da alma!

Ai! como foram mas, amargas, aziagas,
as horas que passou est'alma combalida!
Mas o instante de horror maior em minha vida
foi quando eu a despi e examinei-lhe as chagas!

Depois, risquei no chão, uns sinais cabalísticos...
Lembrei-me de morrer, e pus-me a escrever dísticos.

Epitáfios assim: "Foi mau, mas morreu cedo".
E havia logo abaixo, um nome de mulher...
(A gente muita vez escreve o que não quer...)
Sepultura e noivado... Estremeci de medo.

Que se a idéia de morte as vezes nos conforta,
apavora-nos ver uma pessoa morta.

E fiquei-me a cismar. Além, a Lua triste
que tinha molhada em pranto a palidez da face...
(Que bom seria ouvir, se a Lua nos contasse,
os romances de amor a que dos céus assiste!)

Não sei por que será que os aspectos de agosto
me convidam a cisma, a hora do sol-posto!...




























SONETO DE UM PAI


Vê-la crescer, florir — viço e perfume;
 já sorri; quer falar; tartamudeia;
 diz "mamãe" e "papai" sufoca o ciúme.
 Os dentinhos lhe vêm.  Anda.  Chilreia.

 Traz a casa de risos sempre cheia.
 Vai ao colégio, mas com azedume.
 Aborrece as bonecas.  Cresce alheia
 à formosura e à graça que resume.

De moça tem cismas e alvoroços.
Põe vestidos compridos; fala pouco,
suspira, sonha, anseia e pensa em moços.

Vê-la como fulgura numa sala...
Envaidecer-me e... chorar como um louco
quando o noivo vier arrebatá-la!








CHUVA DE ESTRELAS 

Li uma vez em páginas antigas
que, se uma estrela cai do céu clemente,
concede tudo o que lhe pede a gente.
Como as estrelas são nossas amigas!

Por isso agora, insone e sem fadigas,
fito os céus toda a noite atentamente.
Chovem estrelas… E eu: – Astro fulgente,
quero que eterno o nosso amor predigas!

– Faze-me bom! Conserva-lhe a doçura!
– Estrela, dá-nos paz, serenidade!
– Que a nossa filha seja linda e pura!

Doiradas ambições! Como dizê-las,
se elas são tantas? Deus, por piedade,
manda que caiam todas as estrelas!

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